sábado, 17 de dezembro de 2011

COMENTÁRIO SOBRE O CAPÍTULO I DE O MUNICÍPIO DE SANT'ANNA: O DEPÓSITO

Este trecho é um "hino" nacionalista, dentre outros tantos presentes no livro.
Rememorando as lutas que a Coroa Portuguesa travou com a França e a Holanda; utlizando de linguagem romântica e bucólica, o autor mostra o território cearense pela descrição de sua topografia,vegetação e limites. O território conquistado e batizado pelo nome de Ceará é definido como um troféu conquistado e nação de um só povo.
Toda esta descrição é feita para contextualizar a Lagoa Encantada, Cenário do território da Vila do Aquiraz onde ocorrerá o encontro entre o Ouvidor Antônio Loureiro de Medeiros e a mítica figura da índia Messejana.
Absorto na contemplação da referida lagoa, o Ouvidor Loureiro é surpreendido pela aparição da centenária indígena que, a princípio, pareceu-lhe muito mais um espectro daquelas matas do que um ser humano.
A primeira descrição da nativa mostra toda a estranheza do colonizador ante a alteridade da índia:

"Esbranquiçados cabellos, estirados como as cerdas do Javali, pendião - lhe da cabeça até a cinta; e o corpo vergado, fasendo-os cahir sobre a fronte, deixava ver nelles uma toalha branca meio esfumada, que lhe envolvia o rosto.
O resto do corpo era coberto por uma saia curta tecida de penas de pássaros, preza as costelas ocultando-lhe as mamas, e sustentada por duas largas embiras, que enlaçavão os hombros: as espaduas e os braços estavam nús".

Neste primeiro momento a figura da nativa idosa, encurvada e seminua é mítica e anacrônica, símbolo de uma era anterior à criação da "Nação Brasileira", marcada pela "selvageria", por "elementos diabólicos e pagãos".
A reação do ouvidor a esta figura que se lhe aproxima com passos firmes e ligeiros, e lhe dirige a palavra em fluente português é sacar da bainha um punhal, para indicar a distãncia que esta deveria ficar dele.
Por seu turno, a resposta da índia descrevendo as armas e os "soldados" que lhe guardavam, no discurso nacionalista do texto, longe de ser uma descrição da Alteridade do povo Tabajara, é um conjunto de figuras de linguagem utilizado para dizer ao colonizador que a "Nação Brasileira" tem condições de reagir ás ofensas portuguesas e de caminhar sem os auspícios de Portugal.
Ameaçado pela possibilidade de ser alvejado por flechas, Loureiro escuta Messejana que, inicia seu discurso de heroína nacionalista rememorando a dor de Antônio Felipe Camarão, em seu leito de morte, ao perceber que apoiara a um conquistador que traíra seu povo e a muitos outros povos indígenas submetendo-os à escravidão.
Emocionada em certa altura do discurso, a índia solta um grito de dor em meio a convulsivo pranto que, assustando o Ouvidor, leva-o a novamente sacar o punhal e a ser surpreendido com o disparo de flechas que caindo entrecruzadas servem de arrimo á índia.
Estava provado o que a índia dissera ao Ouvidor no início do encontro e, o sentido do gesto das flechas entrecruzadas tem seu sentido ampliado na fala nobre e profética que o autor atribui á personagem:

"Neste momento, senhor, eu sou a imagem da Pátria, que acabrunhada de opressões, reage contra ti, que symbolisas o poder... "
"O espetaculo que ora se dá, será reproduzido no futuro: Um grito, como o que se exahlou do meu peito, arrebatará este Paiz às garras de Portugal!...a nação abatida se erguerá!...As suas armas assustarão o despotismo, e a libreddade assumirá os seus direitos."

A nobreza da fala da índia reflete um dos objetivos da corrente do romantismo da época: A BUSCA DE UM HERÓI NACIONAL, que seja o símbolo de uma nação independente e única.
A parte seguinte à esta tem como fio condutor a idéia de que "o homem não é propriedade do homem."
A defesa da liberdade, que "sai da boca" da heroína do folhetim não é um mero desenvolvimento de uma idéia reproduzida a partir de algo que o Autor aprendeu na Faculdade de Direito do Recife.
José Mendes Pereira, como advogado e deputado provincial, particpou de vários momentos da campanha abolicionista cearense. Um dos mais importantes foi aquele onde, propondo uma emenda ao Projeto de Lei do Deputado Raimundo Carlos da silva Peixoto, consegue que este seja aprovado, elevando o valor da taxa de exportação de escaravos, conforme relata Raimundo Girão em seu livro A Abolição no Ceará.
Logo, o discurso sobre a liberdado proclamado por Messejana, foi elaborado neste contexto e com o propósito de apoiar o movimento para derrubar o sistema escravocrata: um dos pilares do Império de Dom pedro II.
Acreditamos que os folhetins não eram destoantes dos artigos publicados no Jornal. Studart Filho, em biografia do Dr José Mendes Publicada em seu dicionário Bio - bibliográfico cearense, afirma que o mesmo utilizou o jornal como instrumento de libertação dos escravos da cidade.
Porém, neste capítulo, os exemplos de agressão á liberdade são referentes aos indígenas muito mais por uma questão de preservação da imagem de um cidadão brasileiro que está sendo construída do que dos índios em si mesmos, com suas identidades: Tabajara,Calabaça, Cariú, etc.
As entrelinhas deste argumento final trazem a seguinte idéia: não se pode construir uma nação com indivíduos autênticos sob a mancha da escravidão que é uma ameaça à sua soberania.
Messejana proclama todo este discurso ao Ouvidor Loureiro por acreditar ser o mesmo homem de bons propósitos e capaz de promover a luta por liberdade que ela lhe surgeriu.
Para atestar ao Ouvidor, esperado e escolhido entre tantos, que era "criatura evoluída" e possuídora de bons propósitos, afirma ser "cearense" e "cristã".
Estas afirmações foram a senha necessária para que o Ouvidor, dali em diante mais tranqüilo, aceitasse acolher o segundo propósito da índia: entregar-lhe um depósito (espécie de pequena urna feita de uma cabaça e atada com fios de fibra vegetal)que o tio - avô Dom Felipe Camarão pediu que fosse entregue em mãos de um ouvidor de boa índole.
As entrelinhas nos comprovam que nem a índia e tampouco o Ouvidor sabiam que ali estava um manuscrito de Frei Cristóvão de Lisboa, sobre o qual falaremos mais adiante.