domingo, 10 de julho de 2011

A CARTA DE FREI CRISTÓVÃO TRANSCRITA EM O MUNICÍPIO DE SANT'ANNA

Eleito para custódio do Maranhão, a cujo estado se acha ligado o território do Ceará, empreendi por terra ao Fortim do Amparo esta viagem; e parti dali no dia 13 de maio passado, em companhia de 4 padres e 25 homens de armas...
A Serra da Ibiapaba a leste foi meu primeiro rumo; do qual forçoso me foi desviar, descendo ao norte, para evitar o gentio que nos embaraça o passo!
Já havíamos vencido as escabrosidades que o terreno nas suas imediações nos oferecia; já nos preparávamos para levantar nossas tendas, e repousar de fadigas, quando um acontecimento extraordinário veio nos surpreender, ao por do Sol!... Um bando de 90 tapuias, com inconcebível algazarra, acometeu-nos com tal violência que na sua fúria, nos faria sucumbir, se Deus, a quem dirigi meus rogos, não tivesse encorajado os homens que nos defendiam.
Nessa luta tremenda e desesperada, fomos vitoriosos! Os Tapuias fugirão!... Porem, ocultando-se na mata, de quando em vez nos despediam suas flechas que passavam por sobre as nossas cabeças, ora caindo além!
Não podemos, portanto, levantar as tendas! A jornada continuou no meio da noite, que se aumentava de trevas na espessura do emaranhado do bosque que atravessamos!
Caminhamos toda noite; e no dia seguinte, tendo descido mais ao Norte, aquela ponta da Ibiapaba de que fugíamos se mostrava ao longe verdejante, admiravelmente viçosa.
Estávamos a três léguas mais ou menos distantes; eram 9 horas da manhã, quando uma chapada se nos abriu adiante, ai levantamos nossas tendas para nos refazer de forças... Os nossos homens saíram a bater as serranias, explorando o inimigo; e de volta, duas horas depois, nos trouxeram água e com eles um índio que conduzia às costas um fardo envolto em peles de veado!... Vestia, apenas ceroulas de algodão, tendo ao lado pendente um arco e seu carcaz deposito de inúmeras e mortíferas setas! A sua fisionomia, conquanto desconfiada, era amigueira!.. Falava mal o português, mas ajudado, dos gestos se fazia entender.
Era da tribo dos Potiguares, natural do Rio Grande do Norte, d’onde partira em Maio de 1603, fazendo parte, com Martin Soares Moreno, de uma expedição, que Pedro Coelho de Sousa conduzia de Pernambuco a Maranhão.
As suas revelações são de todo importantes; entre outras, que por extensas omito, mencionarei as seguintes: - Que essa expedição naquele mesmo tempo, de passagem, tocara na costa do Mucuripe, a uma légua do qual Coelho levantara um forte, que denominou – São Tiago; - sendo a batizada pelos da tribo sua, com o nome de Ceará;
- Que Coelho, ali, pouco se demorou. Seguiu a sua derrota; e do maranhão partira com forças expedicionárias até a Ibiapaba, aonde em 1604, pretendeu se estabelecer.
- Que os Tapuias o receberão mal; revoltaram –se os índios aliados do francês Mambille, sendo ultimamente rechaçado em cruenta guerra, por Mel – Redondo, chefe dos Tabajaras, e por Jaryparyguassú, chefes do Turamambéres, vendo-se obrigado a fugir!...
- Que ele, ferido, não pudera acompanhá-lo; e ali se demorou sendo vigiado pelos índios, até 1608, quando se evadira em companhia do missionário Luiz Figueira, que também fugia conduzindo os restos mortais do padre Francisco Pinto, vítima dos Tapuias!...
- Que chegando ao Ceará, um ano depois, se juntara a Martin Soares Moreno, nomeado Capitão – mór, e como seu afeiçoado, com ele seguira, em 1613; para ao Forte do Rosário, no Jeriquaquara, onde não tendo Moreno voltado de uma viagem rápida ao Maranhão, ele continuava a esperá-lo, constituindo-se na sua ausência, chefe dos índios Camocins, que aderiram à causa portuguesa;
- Que, finalmente, por ali, onde o encontramos, andava concitando os ânimos dos seus aliados para opor embaraço aos Holandeses, que em grandes navios bordejavam em frente aos portos de Camocim e Jeriquaquara.
Soubemos então que aquele violento acometimento dos Tapuias procedia ainda do ódio que votavam a Pedro Coelho; e compreendemos o estado de nossa desgraçada situação!
Desanimados, não sabíamos deliberar! Íamos fazer conselho, quando o índio, debruçando-se no chão, um minuto depois, rápido como a onça, que se lança a presa, saltou nas suas armas dizendo: - silêncio! Nem mais um instante... Partamos!...
Cegamente obedecemos aquele homem, a quem o susto fizera seguir sem reflexão!... A marcha era apressada, no rumo de Nordeste; e ele caminhava na frente abrindo a mata, cujos ramos pareciam flexíveis ao contato dos seus reforçados ombros!
Duas horas depois de uma marcha sempre ativa e fatigante, chegamos a um ribeiro, que o nosso guia chamou – Camocim – ali, estáticos assistimos a uma cerimônia que não pudemos compreender! O índio, apanhando na margem um grande lagarto atravessou-o pelas costas com um farpão de flecha, guarnecida com plumas de guará; e depois fincou-a no leito, como baliza sobre um banco de areia!
Tudo aquilo foi rápido!... continuamos a nossa derrota; e a cem passos dali, paramos porque o índio parou!
A nossa inquietação era excessiva! Já nos levava a pedir explicações ao índio; quando um rugido pavoroso, atroador, retumbando na floresta, fez estremecer a terra que pisávamos!
De joelhos caímos todos... E orávamos fervorosos, quando o índio que ficara sentado, levantando-se, nos disse em tom calmo e gracejador: rezar é bom, amigos, melhor será ainda depois que tivermos ceiado!...
Pareceu-me aquilo uma blasfêmia!... O índio afigurou-se –me naquele momento, em que a morte tínhamos certa, a imagem de Satã que nos queria distrair da oração!... Não lhe respondemos; e então ele alçando a voz, continuou: - Nada tendes a temer... Aquilo que, vos aterroriza, é justamente o que deve vos alegrar!... _ Uma infinidade de índios, contra os quais nada poderiam fazer os vossos homens de armas, marchava em vossa procura quando debruçado no chão, ouvi-lhes o tropel! Foi então que vos aconselhei que fugísseis... Eles seguiram na nossa batida, mas deparando com a minha flecha, surpresos bramiram de raiva, não podendo passar além... Eles conhecem os índios da costa e sabem o quanto vale o chefe Camocim... Leram no símbolo que lhes deixei – a guerra na cor encarnada da pluma da flecha -, e a morte, até de emboscada, no lagarto que pelas costas espetei.
- Aquela flecha foi um marco que lhes estacou o passo: Eles já voltaram... Estais salvos... Vamos à ceia que ainda não comi. E de fato, um instante depois novo ruído atroou os ares, e se foi repetindo ao longe, ecoando de vez em quando, aos ouvidos, até que afinal desapareceu de todo!
No dia seguinte partimos: foi – nos preciso evitar as cercanias da Ibiapaba, que estendia ao sueste; e tomamos o rumo de Nordeste.
Seguimos; e adiante uma serra redonda, que o índio chamou Meruoca ou das moscas, se erguia a distância... Fizemos uma meia volta, e paramos ao norte daquela serra.
A sua verdura foi objeto de nossa admiração! Magnifica era a sua perspectiva!... Soberbos cabeços se elevavam aos céus!... Eram vicejantes até as suas extremidades!
Parecia um ninho de frescura, que Deus em sua alta sabedoria, ali construíra para reagir nos desvios das estações!...
Entre nós e aquela serra estendia – se um serrote do qual um pouco pedregoso se erguia às alturas. Pousávamos na planície junto a um olho d’água, que, em borbulhões, dependia uma torrente límpida, abundante!
Dali seguimos no rumo de Sueste, ladiando a Serra.
Já tínhamos caminhado muitas léguas e nos dispúnhamos ao descanço quando ouvimos na mata, a pequena distância, uma algazarra que parecia um choro infernal! O índio tirou a camisa e para lá se dirigiu...
Soubemos então na sua volta, que ali havia uma taba de tapuias inofensivos, e que choravam a morte de seu velho chefe Cocó chyny... Agitados, pernoitamos na mata dos tapuias; e ao alvorecer da manhã partimos no rumo de Leste. Em seguida atravessamos um ribeiro que nascia daquela serra, tendo-nos antes demorado à sua margem até que nos desse passagem... ao longe vimos um Serrote: - Ali, disse o índio – descansareis dos vossos sustos, porque os tapuias não vos perseguirão mais... O Rio Acaracú é uma linha que os divide entre os Areriús. – Naquele serrote assentaram os chefes de uma e outra tribo nessa convenção, como entre nós no rio Camocim: entre os índios há leis que se cumprem religiosamente.
A esperança começou a renascer em nossos corações desde aquele ribeiro, cuja passagem celebrizamos, comparando-a, na nossa peregrinação com a do mar vermelho... Veio-nos a ideia de salvação!
A sofreguidão para alcançar o Serrote indicado animava a comitiva; e o nosso passo era apressado! Ao meio dia chegamos a margem de um outro ribeiro.
Ali parou o índio, dizendo-nos! Eis o Rio Acaracú, ou Rio das Garças, na língua indígena.
Atravessamos aquele rio, cujas águas desviando dos montões de areia que haviam no leito, abeiravam-se das margens, onde corriam com pequena largura, apenas nos cobriam os pés.
O serrote demorava-se à meia – légua daquele sitio: seguimos na sua direção, ofegantes, cheios de emoções!
A uma hora chegamos as suas cercanias...
À esquerda uma cordilheira pedregosa e à direita o serrote majestosamente se erguia coberto de vicejante floresta!
Entramos entre ambos, numa espécie de vale, e passamos à sua raiz, onde gigantescas árvores entrelaçando as suas frondosas copas formavam, à considerável altura, uma abóboda verdejante derramando sobra e frescura naquele recinto, cujo pavimento se cobria de um verde e macio tapete de relvas!
Maravilhoso espetáculo! – Ali penedia talhava-se precipite do nosso lado, e, na altura de 15 palmos, uma laje sobreposta, destacando-se dela, avançava nos espaço para nós, meio inclinada, formando um dossel original! No fundo debaixo daquela laje, três largas pedras, que pareciam servi-lhe de contraforte, sobrepondo-se umas as outras apresentavam dois degraus regularmente dispostos: de um lado, pela fenda de uma rocha, como se ali houvera uma torneira ou um tubo d’água, com o diâmetro de uma polegada, saiu em jorro precipitando-se numa cavidade, que a natureza caprichosamente fizera na pedra, à imitação de uma Pia! – a todo apresentava um altar, que nos convidava á oração! Ligeira foi a sua contemplação! O quadro sugeriu a todos a mesma ideia, e fomos colocar ali as imagens que trazíamos...
Foi então que vimos com surpresa a de Cristo despedaçada!...
Salvara-se, porém, intacta a imagem da senhora Sant’Anna, que tinha nos braços a da santíssima virgem... E sobre aquele tosco trono, já ornado de folhas e flores silvestres, a colocamos ajoelhando-nos a seus pés.
Oramos... E naquela hora em que o coração compenetrando-se dos mais puros sentimentos de religiosidade, faria voar o pensamento aos artigos da celestial mansão, prometi àquela Santa em troca dos seus favores, erigir-lhe uma capela naquela solidão, onde, mais tarde, os fiéis fizessem eternizar o seu culto e adorações sob a denominação de Nossa Senhora Sant’Anna do Olho D’água!... Eis senhores o voto que ontem fiz, chegando aqui depois de trinta dias de perigosa viagem!...
Hoje prosseguiremos a nossa jornada, e como não é certo chegarmos ao seu termo, apresso-me a escrever estas linhas que um dia dadas as minhas provisões, a Providência os fará receber!...
No cumprimento desse voto, se ele me for vedado, obtereis a proteção Divina; e na sua execução, esquadrinhando o solo que vos descrevo, colhereis frutos e proventos que compensarão vosso trabalho...
Terminada a nossa oração, à convite do índio subi ao Monte... dificilmente chegamos ao seu ponto culminante! Dali se via ao Norte, os morros de areia da praia na distância de 20 ou mais léguas!
Encantador era o painel, que se ostentava aos olhos naquela vastidão, eriçada de um e outro lado por uma cadeia de Serrania, que se terminava no horizonte! Depois o índio voltando-se ao poente disse – ali, a uma légua deste morro, mais ao Sul, um Monte que se cobre de pedras pretas, encerra no seu seio uma jazida de prata, cujo pó alvíssimo é abundante.... – Os seus produtos poderão concorrer para a realização da promessa que fizeste...
E voltando-se, finalmente, para Leste apontou – lá vai o seu caminho... Segue à direita daquelas serras, fugindo às suas imediações...
Ele calou-se; beijou-me a mão, e veloz como o gamo, desceu a penedia, escorreu pelos talhados, e sumiu-se sem o menor estrépito!...

Serrote do Olho D’Água 16 de Junho de 1626.
Frei Cristóvão de Lisboa

3 comentários:

  1. Professor Leandro, onde as cartas do Frei Cristóvão estão guardadas hoje? Ou por quem?

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  2. Prezado Fábio
    Três cartas mais conhecidas estão disponíveis em um artigo da Revista do Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará.
    Contudo, aquela que está transcrita no Livro O Município de Santana não se sabe ao certo se é de Frei Cristóvão mesmo, embora muitos dados presentes nela estejam presentes em cartas de Frei Cristóvão!

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  3. Obrigado Professor, e parabéns pelo grande trabalho que presta a Paróquia e a Santana do Acaraú. Abraço.

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